Revista Oeste – “Estamos formando médicos sem a qualificação mínima necessária”, afirma diretor científico da AMB, José Eduardo Dolci

O Brasil superou a marca de 635 mil médicos em atividade em abril de 2025, o maior número já registrado. A média de quase três médicos por mil habitantes, sugere, à primeira vista, um sistema robusto. Um olhar mais atento revela que o problema não está na quantidade, e sim na localização dos profissionais. Segundo a nova edição da Demografia Médica no Brasil, estudo realizado pela Faculdade de Medicina da USP em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB), a distribuição de médicos continua drasticamente desigual no território nacional, com alta concentração nas regiões mais ricas e urbanizadas, e escassez crônica em áreas pobres e remotas.
Nas capitais, a densidade de médicos ultrapassa com folga o parâmetro considerado aceitável pelo
próprio estudo — três médicos para cada mil habitantes. No Distrito Federal, por exemplo, são quase
19 mil médicos registrados, com uma proporção de mais de seis médicos por mil habitantes. No Rio de
Janeiro, são cerca de 72 mil médicos, com média superior a quatro para cada mil habitantes.
Enquanto isso, o Maranhão registra pouco mais de um médico por mil habitantes, menos da metade do
parâmetro técnico. No Norte do país, que abriga quase 9% da população brasileira, estão presentes
menos de 5% dos médicos existentes no país.
A disparidade se aprofunda quando se leva em conta a diferença entre público e privado. Pacientes
que dependem exclusivamente do SUS — mais de 70% da população — contam com quatro vezes menos médicos do que aqueles atendidos na rede privada.

Impacto no SUS e no atendimento básico
A concentração tem efeitos graves: filas longas, unidades de saúde
sobrecarregadas e diagnósticos tardios. A escassez de médicos compromete especialmente a atenção
primária, porta de entrada do SUS, e contribui para o agravamento de doenças que poderiam ser
prevenidas ou tratadas precocemente.
A realidade é sentida na pele por moradores de cidades como Paulista, no alto sertão da Paraíba.
Com cerca de 12 mil habitantes, o município enfrenta grave escassez de profissionais da saúde.
Apenas um médico mora na cidade. Os outros vêm de fora só para cumprir plantões, sem vínculo com a
comunidade.
A dona de casa Linderlene Alves Cardoso, 47 anos, mãe de duas filhas já se acostumou a percorrer dezenas de quilômetros sempre que precisa de um especialista. “Quase sempre tenho que viajar até São
Bento ou Pombal, onde há mais médicos atendendo”, conta.
Casos como o de Linderlene se repetem em centenas de municípios pelo interior do país, onde a
precariedade de infraestrutura e a falta de incentivos tornam a fixação dos profissionais de saúde
um desafio.
Segundo Julyana Silveira, secretária de Saúde de Paulista, todas as unidades de saúde estão em
funcionamento. Os médicos contratados – na maioria profissionais da região – recebem cerca de R$ 12
mil por mês, mais refeições. Mesmo com pagamento regular, o município não consegue garantir que os
médicos cumpram integralmente a carga horária contratada. “A maior dificuldade é fazer com que
trabalhem as 40 horas semanais nas unidades”, admitiu a gestora. “O máximo que conseguimos são 32
horas.”
Julyana argumenta que o modelo segue as determinações do programa Mais Médicos – que prevê 32 horas de atuação na unidade e oito horas para atividades externas. Mas o efeito prático é uma rotina de
atendimento reduzido e baixa resolutividade no dia a dia da população. Além disso, o município não
oferece ajuda de custo, transporte ou moradia, o que pode limitar a atração de profissionais
de fora da região.
Quando a estrutura faz diferença
A situação muda completamente em Patos, cidade polo do sertão da Paraíba, localizada a 75 quilômetros de distância de Paulista. Com cerca de 100 mil habitantes, Patos se destaca como exemplo de sucesso na fixação de médicos — tanto na atenção básica quanto nas especialidades. Segundo Leonidas Medeiros, secretário municipal de Saúde, o município consegue manter médicos graças a três fatores: formação local, estrutura robusta e modelo de gestão com atrativos reais.
“Temos curso de medicina na cidade e residência em Saúde da Família. Dos 42 postos de saúde, 28
funcionam com médicos residentes”, explica. “Além disso, complementamos, por meio de nota fiscal, o
valor pago pelo SUS. Isso torna os plantões atrativos e ajuda a manter os especialistas.”
Patos ainda conta com duas UPAs, hospital regional, maternidade e hospital infantil — todos
integrados a uma rede estadual que atende quase 90 municípios. “O médico vem porque aqui ele encontra estrutura, equipe e possibilidade de atuar com dignidade”, disse
Medeiros. “Isso faz toda a diferença.”
‘Não é só o salário’, diz presidente do CRM-PB
De acordo com Bruno Leandro, presidente do Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM-PB), a dificuldade em fixar médicos no interior vai além da remuneração.
Os principais obstáculos são a ausência de estrutura, vínculos precários e falta de perspectiva de
carreira. “Muitas vezes, o médico é contratado por meio de vínculos frágeis, como contratos
temporários ou terceirizações, ficando à mercê de mudanças político-partidárias locais”, afirma.
“Isso gera insegurança e instabilidade.”
O CRM-PB defende a criação de uma carreira de Estado para médicos, com estrutura mínima garantida:
acesso a exames, equipe multiprofissional e apoio técnico para encaminhamento de casos complexos.
“Sem equipe, sem exames, sem apoio, o médico acaba sendo um ‘despachante’ de casos, o que corrói a
motivação”, alerta Bruno Leandro.
Mesmo quando há salários atrativos, o profissional não permanece se não houver condições reais de
trabalho e retaguarda. “O médico precisa sentir que faz parte de uma rede que funciona”, enfatiza.
“Não adianta estar sozinho
Retorno ao passado
O governo Lula retomou o programa Mais Médicos, rebatizado de Mais Médicos para o Brasil. A estratégia tem sido recontratar médicos, em grande parte estrangeiros, formados fora do país, sem exigência de revalidação do diploma. O ex-ministro Marcelo Queiroga, que ocupou a pasta entre 2021 e 2022, afirma que o governo atual desfez avanços obtidos na gestão anterior. Segundo Queiroga, o governo Bolsonaro criou o programa Médicos pelo Brasil, que previa salários acima de R$ 30 mil, vínculo empregatício, processo seletivo rigoroso e prioridade para médicos com CRM. “Tínhamos um banco com mais de 16 mil profissionais prontos para atuar.”
Além da distribuição desigual, a qualidade da formação médica é outro ponto sensível. Durante os governos petistas, houve uma explosão de cursos particulares de medicina, muitos sem estrutura adequada. De acordo com Queiroga, mais de 160 faculdades foram abertas sem controle de qualidade, o que gerou 16 mil novas vagas. “As faculdades formam, mas não qualificam”, diz. “Defendemos o exame de ordem para médicos, como já existe na OAB.”
Formação acelerada e qualidade em xeque
Essa combinação de expansão acelerada, falta de controle de qualidade e distribuição desigual de
profissionais liga um alerta entre especialistas. Não basta formar mais médicos – é preciso
garantir que saiam devidamente preparados e que cheguem a todos os brasileiros.
Segundo o estudo, o país tem 448 faculdades de medicina em funcionamento, maior número do mundo, com outras 60 instituições na fila para autorização ou em implantação. Anualmente, cerca de 39 mil novos médicos se formam no país. Contudo, a qualidade da formação preocupa. Na edição mais recente do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), realizada em 2023, apenas seis cursos de medicina atingiram o conceito máximo (nota 5), enquanto dez faculdades receberam nota 1, o pior desempenho. A disparidade nos resultados reforça a fragilidade da formação em muitas instituições. Ao menos um absurdo foi desfeito: em maio, o Ministério da Educação (MEC) proibiu o ensino à distância para os cursos de medicina — juntamente com direito, enfermagem, odontologia e psicologia.
“Estamos formando médicos sem a qualificação mínima necessária”, alerta o otorrinolaringologista
José Eduardo Dolci, diretor científico da Associação Médica Brasileira (AMB). Segundo Dolci, a
abertura indiscriminada de escolas de medicina criou gargalos como a falta de campos de estágio e
de professores qualificados. “Essas escolas novas não têm onde treinar os alunos, especialmente no
internato, que é eminentemente prático”, afirmou. “Falta professores qualificados para darem aula
nessas escolas.”
Com a projeção de que o Brasil alcance 4,4 médicos por mil habitantes até 2035, o desafio não é
mais formar, mas distribuir e fixar profissionais. O estudo conclui que os Estados com menor
densidade médica são, também, os mais dependentes do SUS e os que mais sofrem com a desassistência.
Além disso, o Brasil não precisa de mais médicos. Precisa de melhores profissionais.
FONTE: REVISTA OESTE