O GLOBO entrevista o Dr. César Eduardo Fernandes, Presidente da AMB - AMB

O GLOBO entrevista o Dr. César Eduardo Fernandes, Presidente da AMB

SÃO PAULO — O ginecologista e obstetra César Fernandes, 71, está à frente da Associação Médica Brasileira (AMB), entidade que possui 27 Associações Médicas Estaduais e 396 Associações Regionais. Ao GLOBO, o médico avalia a gestão da saúde no governo Bolsonaro e fala sobre os recentes embates da AMB com o Conselho Federal de Medicina, defende um marco regulatório para a telemedicina e o uso das máscaras em ambientes fechados. 

Como o senhor avalia a atuação do governo Bolsonaro na área da saúde? 

A minha análise é crítica e não ideológica. Não ficamos satisfeitos com a forma como foi conduzida a pandemia ao longo desses dois anos. A saúde deve ser pautada por uma política de Estado e não por uma política de governo. Me parece que o governo deveria ter responsabilidade em oferecer o suporte ou dizer se existe condições no orçamento da União para fazer frente a essas demandas de política de Estado, no sentido do quanto delas pode ser acolhido e como vamos priorizá-las. A saúde não pode ser contaminada porque o governante A, B, C ou D pensa diferente do que a ciência está dizendo. Nesse sentido, eu acho que esse governo deixou a desejar. O país está vivendo uma época muito difícil. O governo tem misturado decisões técnicas com decisões políticas na saúde. 

Recentemente, o presidente sancionou uma lei que autoriza inclusão no SUS de medicamento com uso distinto do aprovado pela Anvisa. Como o senhor enxerga essa decisão?  

A Anvisa faz um trabalho com muita competência. É uma agência de alta respeitabilidade por todos os cientistas nacionais, pelos médicos, por quem está envolvido com essa questão de medicamentos, de equipamentos e tudo que tem a ver com procedimentos na área de medicina. Não vejo por que criar essa dicotomia. Ela não tem deficiência técnica em suas funções e não vejo por que uma medida como essa possa trazer benefícios. 

A AMB sempre foi contrária ao kit-Covid, diferente do Conselho Federal de Medicina. Esse embate tem gerado ruídos entre os médicos?  

Quero deixar muito claro que a AMB respeita a instituição Conselho Federal de Medicina, mas  que se permite discordar de posições tomadas. Isso é liberdade de expressão, é a pluralidade de ideias. E digo que o embate de opiniões entre as duas instituições deixa o médico inseguro. Vemos, inclusive, médicos se posicionaram a favor, defendendo o kit-Covid, quando está cabalmente demonstrado que o kit-Covid não é eficaz. Quando não tínhamos vacina, o indivíduo acometido pela Covid tinha um risco muito maior de ter complicações da doença e precisar de assistência mecânica ventilatória e morrer. Tínhamos UTIs lotadas. A suposta eficácia do kit poderia fazer algum sentido nos meses iniciais de 2020, quando não havia conhecimento científico. Já na metade do ano 2020 as evidências todas convergiam para a ineficácia e a insegurança. E os conhecimentos científicos devem pautar as nossas decisões. O kit-Covid não faz sentido e ele não deve ser usado. No que diz respeito ao CFM, ele teve uma posição muito dúbia, em que ele diz “olha, nós não estamos falando de que existe a eficiência desse tratamento. Entretanto, achamos que isso está na autonomia do médico. E ele que deve prescrever”. Se não há segurança e eficácia, o médico não pode ter autonomia para prescrever um tratamento. 

O senhor tem se posicionado contra as propostas de mudança na lei que regula os planos de saúde que tramitam no Congresso Nacional. Por quê? 

Estou muito preocupado com as propostas, não devemos retroceder nas coberturas que os pacientes têm e nos benefícios consignados na lei de 1998, que instituiu a regulamentação da ANS e das operadoras de saúde. Há fortes indícios de que ela pode retroceder. Hoje, em termos de cobertura de saúde, as pessoas têm direito àquilo que está no rol de procedimentos aprovados pela ANS. O rol hoje é exemplificativo. Por exemplo, lá está determinado que o plano deve cobrir uma cirurgia no joelho. Mas não está definido como deve ser feita essa cirurgia. Eles querem transformar isso em um rol taxativo. Ou seja, se não estiver escrito “cirurgia de joelho por artroscopia”, você não pode fazer essa cirurgia por artroscopia. Nós entendemos que o rol taxativo vai gerar muitos problemas e vai vir a prejuízo dos pacientes, então não queremos que mude. Se você faz um rol mais restritivo, isso também onera o SUS porque os indivíduos vão tentar resolver os seus problemas de alta complexidade no SUS. 

O Congresso também estuda a criação de um marco regulatório para a telemedicina. O que a AMB defende para essa área?   

A telemedicina traz no seu bojo, na sua essência, um ponto que me parece que sem ele, ela fica absolutamente descaracterizada, que é a acessibilidade. A telemedicina é um grande avanço para quando existe falta de acessibilidade e para vencer barreiras territoriais. Nós defendemos que não devemos criar barreiras territoriais. Uma das coisas que querem incluir na telemedicina é que o médico só vai poder atender pacientes de onde ele tenha registro no Conselho Regional de Medicina local.  Outra restrição que querem fazer é determinar que o médico só pode atender a um paciente por telemedicina se em algum momento ele já o atendeu presencialmente. Então ele estaria impedido de fazer uma primeira consulta por telemedicina. O princípio da telemedicina é justamente atender à distância. É por isso que ela existe. Se eu estiver presencialmente, não precisaria da telemedicina. Outro ponto importante é que as pessoas confundem com teleconsulta médica. Ela é muito mais ampla. Tem teleinterconsulta, quando um médico discute o caso à distância com outro médico. Existe a teleorientação, que os enfermeiros podem fazer. A teleconsulta psicológica, que os psicólogos podem fazer, a teleconsulta nutricional. Então nós temos que colocar no centro da discussão, não o interesse do médico, e sim o interesse do paciente. E essas decisões não beneficiam o paciente. 

Como o senhor avaliou a flexibilização no uso das máscaras?  

Trata-se de uma questão de cidadania, não legal. Se estou num ambiente em que percebo que estamos aglomerados, se puder ficar de máscara, melhor. Por segurança. Em um ambiente aberto, longe de qualquer pessoa, não vejo problema em não usar a máscara. Em um restaurante, por exemplo, onde há distância entre um e outro, não vejo problema, levando em conta o alto percentual de pessoas com vacinação completa. Mas não podemos dar alforria às máscaras. Não é a hora. Cada um de nós tem que fazer um exame de consciência e analisar caso a caso. Em um estádio de futebol, por exemplo, acho que seria importante. Apesar de ser aberto e precisar mostrar comprovante de vacinação para entrar, as pessoas estão muito próximas. Na hora de comemorar o gol você abraça quem está do seu lado, sem nem saber quem é a pessoa. Então, por que não ficar de máscara nessa circunstância? 

Um dos grandes problemas na saúde do país é a má distribuição dos profissionais, como solucionar esse problema?  

Investindo na carreira médica de Estado. Seria muito importante para que houvesse a possibilidade de que o médico fosse para um local menor e se fixasse no longo prazo, com boas condições de trabalho. Essa carreira também precisa ser excludente. O juiz não pode ser juiz de manhã e à tarde ter um escritório de advocacia. Do mesmo modo, eu acho que o médico deveria ter uma carreira exclusiva de Estado. Para isso, precisa ter atrativos. Hoje, o advogado que se forma é muito seduzido e motivado a seguir a carreira da magistratura porque que ele vai ter condições dignas de trabalho, pode fazer uma carreira e ascender. Isso não acontece com o médico. Ele é contratado a caráter precário, por pouco tempo, sem benefícios. O segundo fato que eu acho é qualificar a formação do médico. Houve uma proliferação exagerada de escolas médicas com a ideia de que precisamos de mais médicos, como se tivéssemos poucos. Ratifico aqui: o problema não é a falta de profissionais e sim a má distribuição de médicos. Temos aproximadamente 600.000 médicos no Brasil. Estamos formando 40.000 médicos por ano. Dentro de poucos anos, teremos mais de 1 milhão de médicos. Por habitantes, nós temos mais médicos que os Estados Unidos e a França. Para piorar, temos médicos que estão saindo com muitas deficiências dessas escolas. Não por culpa deles, mas por culpa do aparelho formador. Por isso, achamos que é preciso exigir um exame de proficiência dos médicos, para que eles atestem qualidades que os permita trabalhar para a assistência à população, como já acontece com os advogados.

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