Reflexões de final do ano: O salário do medo
*Dr. Roque Salvador Andrade E Silva – 28/12/2021
O título acima é evocativo do célebre filme francês de H. G. Clouzot, Le Salarie de la Peur, um clássico da cinematografia do pós-guerra, baseado no romance homônimo de Georges Arnaud e estrelado por Yves Montand. O roteiro descreve a epopeia de dois caminhões carregados de nitroglicerina, vagueando furtivamente por estradas da América Latina a serviço de uma companhia petrolífera. Ambos explodem. A tônica principal da narrativa, vazada em apavorante suspense, recai sobre a coragem e o medo dos quatro motoristas; mas nem por isso a película é menos alusória ao quadro dos países semicolonizados, onde tais aventuras passam do irreal, e isto foi certamente um dos ingredientes que lhes garantiram considerável sucesso.
O símile aplica-se perfeitamente à jornada atual dos médicos brasileiros, arrostando a carga da responsabilidade laboral pelos difíceis caminhos de um exercício profissional minado de eventos potencialmente explosivos. Submetidos a condições indignas de trabalho, e a remunerações infames, que os fazem vaguear por empregos inconsistentes, à busca de um somatório de remuneração que os mantenha sofregamente acima da linha da indignidade, os médicos expõem-se a toda sorte de vicissitudes e provações. Não raras vezes, explode a carga individual de nitroglicerina, na faísca de estresse ou dos desacertos que a ética codificada nominou de imprudência, imperícia ou negligência. Atrás de tudo isto, o salário do vexame, o salário da infâmia, o salário do medo – eles fazem a caravana seguir.
Há quem não acredite, até pelo menos a contracena surpreendente com o esquálido contracheque, irrisório, tragicômico, tão material e palpável quanto uma banana de dinamite. Menos de dez mil reais é o salário de muitos médicos em plena atividade. Menos de cinco mil reais, o surrealista vencimento de um médico aposentado do serviço público, após 35 anos jornadeando com sua carga de explosivos à mão – e os que não chegam ao fim da jornada? E os que cumprem cumulados de morbidades, hipertensos, cardíacos, diabéticos, entortados, dementes?
O salário do medo é uma aventura horripilante. Em recente enquete nacional, promovida pela AMB – Associação Médica Brasileira, ficou claramente demonstrado que a esmagadora maioria dos médicos enfrentam três a quatro empregos miseráveis – certamente mal cumpridos – para amealhar uma remuneração média de pouco acima de dez mil reais. É uma vergonha nacional, não a performance dos médicos, mas o pouco caso que deles fazem os seus empregadores públicos e privados, com raras e honestas exceções; ou o assalto que sobre eles perpetram os compradores de serviços, pagando consultas de míseros oito reais e dezesseis centavos (é isso mesmo, oito reais e dezesseis centavos!) a pouco menos de cento e cinco reais.
Se correr o bicho pega, se parar o bicho come”. A classe médica pede socorro à sociedade civil, a quem, em última análise, serve, a despeito dos intermediários do seu
nobre ofício. Somente a conscientização, o protesto geral e uma AMB – Associação Médica Brasileira, forte e representativa, poderão salvá-la dos abismos dessa estrada infame; ou a carga explodirá, como no filme de Clouzot. E aí, não dará nem para juntar os cacos, porque a própria emblemática da profissão haverá de capitular; e ninguém vai querer ser médico, enfrentar cinco anos de estudos elementares, oito anos de estudos secundários, três de estudos básicos, seis de estudos profissionalizantes, mais três e pós-graduação e dois de especialização, para difícil aprendizado da condução de um veículo carregado de nitroglicerina.
Pelo menos quatro motoristas haverão de topar a parada – ainda, nos dias de hoje, pelo salário do medo. Não queremos ser tão pessimistas e nos ensimesmar no medo. O final do ano sempre nos renova esperanças de tempos melhores. Esperamos que, efetivamente, cheguem para os médicos trazendo condições dignas de trabalho e remunerações mais condizentes e justas em reconhecimento a tão nobre mister.
O tempo dirá!
Feliz 2022 com muita saúde e muitos abraços a todos!
*Dr. Roque Salvador Andrade E Silva (BA) é vice-presidente da Região Nordeste na atual gestão da Associação Médica Brasileira – AMB.