Estadão – Artigo: O Brasil precisa mesmo de mais médicos? – AMB

Estadão – Artigo: O Brasil precisa mesmo de mais médicos?

Por César Eduardo Fernandes

Crescimento desordenado de escolas médicas levanta alerta sobre qualidade da formação e atendimento à população

Muito se fala sobre a necessidade de mais médicos no Brasil. Em um país de dimensões continentais, com desigualdade no acesso à saúde e regiões ainda carentes de assistência, essa pode parecer uma demanda óbvia. Mas será que o aumento desenfreado de profissionais garante, de fato, uma medicina de qualidade? A proliferação de cursos — muitos sem hospitais próprios, ambulatórios ou professores qualificados — levanta uma preocupação séria: estamos formando médicos prontos para atuar com segurança?

Segundo a nova edição da Demografia Médica no Brasil (2025), produzida pela Associação Médica Brasileira (AMB), em parceria com a Faculdade de Medicina da USP e o Ministério da Saúde, o País ultrapassou a marca de 450 escolas médicas. É o maior número do mundo. No entanto, esse crescimento veio desacompanhado de uma política consistente de estruturação do ensino, formação prática e supervisão técnica.

A abertura indiscriminada de cursos de Medicina, de Norte a Sul, muitas vezes sem hospitais-escola, ambulatórios ou docentes capacitados, representa uma ameaça à qualidade da formação médica. Estamos vendo crescer uma geração de profissionais que pode sair da universidade com deficiências graves de preparo — e ainda assim, com autorização legal para atender pacientes.

O cenário é ainda mais preocupante quando se considera que o curso de Medicina no Brasil é “terminativo”. Isso significa que, ao final da graduação, o médico pode registrar-se nos conselhos e começar a exercer a profissão sem qualquer formação complementar, como a residência médica.

Na prática, isso dá à população uma falsa sensação de segurança: mais médicos formados não significa, necessariamente, melhor atendimento. E tampouco garante diagnósticos corretos, tratamentos adequados ou condutas clínicas seguras.

É nesse contexto que ganha força o debate sobre a criação de um Exame Nacional de Proficiência em Medicina — proposta que tramita no Senado Federal e conta com o apoio da AMB e outras entidades médicas, que nas últimas semanas têm tido audiências públicas na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), para debater o projeto Projeto de Lei 2.294/2024, de autoria do senador Astronauta Marcos Pontes (PL-SP).

Na prática, o texto altera a Lei 3.268, de 1957, que dispõe sobre os conselhos de medicina, para tornar obrigatória a aprovação no exame como requisito para o registro profissional de médicos.

A medida, semelhante ao exame da OAB para advogados, prevê uma avaliação obrigatória para recém-formados em Medicina, com o objetivo de garantir que esses profissionais tenham as competências mínimas exigidas para o exercício da profissão.

Segundo o projeto, o exame, de aplicação nacional, terá ao menos duas edições por ano e avaliará conhecimentos teóricos, éticos e habilidades clínicas. A proposta garante a privacidade dos resultados individuais, que seriam conhecidos apenas pelos Ministérios da Educação e da Saúde. Médicos já registrados e estudantes que ingressaram antes da vigência da lei estariam dispensados da prova.

A crítica mais frequente à proposta é sobre o que aconteceria com o estudante reprovado. Teria ele jogado anos e dinheiro fora?

A resposta é: não.

Assim como ocorre com advogados que não passam na OAB, o recém-formado em Medicina poderá buscar reforço de sua formação, seja em sua faculdade de origem, seja por conta própria, e tentar novamente. O que não se pode aceitar é um sistema que habilita automaticamente todo e qualquer diplomado, independentemente de sua real qualificação.

Essa é uma proposta que, longe de punir o aluno, visa proteger a sociedade. Se uma instituição tem taxas de reprovação elevadas entre seus egressos, isso é um sinal de que algo está errado com a formação oferecida. Caberá ao governo agir com responsabilidade, avaliando essas escolas e, se necessário, reavaliando sua autorização de funcionamento.

A residência médica também enfrenta desafios semelhantes. O número de vagas é insuficiente diante do número de egressos da graduação. E mesmo nos programas existentes, há lacunas de supervisão, estrutura e critérios de avaliação.

Esse cenário também preocupa. A AMB estuda, inclusive, implementar um cadastro atualizado de especialistas titulados pela entidade, com validação de critérios técnicos e acompanhamento da formação continuada. A população brasileira precisa — e merece — mais do que números: necessita de médicos bem formados, atualizados e preparados para exercer a Medicina com ética, empatia e competência.

A relação médico-paciente — essencial para um cuidado humanizado e eficaz —, há anos vem sendo fragilizada e só será resgatada com investimento na qualidade do ensino e com mecanismos que assegurem que cada novo profissional tenha, de fato e comprovadamente, adquirido as competências e habilidades fundamentais para bem cuidar de seus pacientes.

O conhecimento de um médico não pode ser presumido, tem que estar comprovado. Se o Brasil precisa de mais médicos, que sejam médicos bem formados. Porque saúde pública não se faz apenas com quantidade — se faz, também e sobretudo, com qualidade.

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Assessoria de Comunicação da AMB