Saúde Digital: O que mudou em 10 anos – E o que vem pela frente? – AMB

Saúde Digital: O que mudou em 10 anos – E o que vem pela frente?

Ana Cláudia Pinto
Médica PhD, CEO da Find.AI, conselheira e executiva em saúde digital com 25 anos de atuação, C-level em inovação, data analytics e professora da FGV.

De prontuários para inteligência: uma década de transformação

Há dez anos, falar em “tecnologia na saúde” remetia quase exclusivamente ao prontuário eletrônico. O foco era automatizar tarefas administrativas, facilitar a cobrança de procedimentos e reduzir o uso de papel. A TI era percebida como suporte — e não como parte do cuidado.

Mas algo importante mudou nesse tempo.

Entre 2015 e 2025, saúde digital deixou de ser um “acessório tecnológico” e se tornou parte essencial da estratégia clínica e de saúde populacional. Em vez de olhar para trás (histórico do paciente), passamos a olhar para frente: quais riscos estão em curso? O que posso evitar? Como entrego cuidado mais resolutivo, mais cedo e com menos desperdício?

Essa mudança foi puxada por três eixos fundamentais:

  • A consolidação da telemedicina como modalidade assistencial legítima e regularizada no Brasil (Lei 14.510/2022) [1];
  • A criação da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) e o avanço da interoperabilidade (com adoção crescente de FHIR) [2];
  • E, mais recentemente, a entrada da inteligência artificial generativa como aliada na análise de dados e apoio à decisão clínica [3].

O mais importante: essa transformação digital começa a ser sentida no consultório, no hospital e na saúde ocupacional — com impacto direto na forma como atendemos, acompanhamos e planejamos o cuidado.

O que já é realidade: cinco mudanças visíveis para o médico

1. Telemedicina integrada ao cuidado contínuo
Antes vista como uma solução de acesso, a telemedicina agora faz parte da linha de cuidado — seja para triagem inicial, acompanhamento de crônicos ou apoio à saúde mental. A regulamentação trouxe segurança jurídica e clareza para o uso ético e clínico dessa ferramenta [1].

2. IA e analytics na prática cotidiana
Hospitais e operadoras já utilizam modelos preditivos para identificar pacientes com maior risco de internação ou agravamento clínico, permitindo intervenções antecipadas. Um exemplo descrito no capítulo mostra redução de 69% em cirurgias ortopédicas desnecessárias e ROI de 4,18 em 1.716 vidas acompanhadas por 12 meses [4].

3. “Copilotos clínicos” para registro e apoio à decisão
Ferramentas baseadas em IA generativa ajudam a redigir sumários, sugerem condutas e organizam informações relevantes, economizando tempo de documentação e reduzindo pajama time [5].

4. Dados integrados para gestão do cuidado
A RNDS e outras iniciativas de interoperabilidade começam a permitir acesso a dados clínicos dispersos — exames, vacinas, prescrições — com menos fragmentação, melhorando continuidade e reduzindo redundâncias [2,6].

5. Redesenho das jornadas de cuidado com base em dados
Programas de atenção são reformulados a partir de evidências reais (o que funciona, para quem e com qual resultado), o que favorece a adoção de modelos baseados em valor (VBHC) — desde que sustentados por dados confiáveis e estruturados [2].

Riscos e cuidados: o que ainda precisamos vigiar

  • Segurança e privacidade de dados, em ambientes com múltiplos sistemas e fornecedores [3];
  • Viés algorítmico, quando a IA é treinada com bases desbalanceadas;
  • Adoção desigual entre instituições e profissionais;
  • Hiperautomatização sem curadoria clínica, com impacto na qualidade do cuidado.

A OMS (2024) publicou diretrizes sobre uso ético e governança de modelos multimodais em saúde, enfatizando rastreabilidade, auditabilidade e supervisão humana contínua [3].

E para onde vamos? Os próximos 10 anos

  1. Interoperabilidade real: prontuários, RNDS e plataformas privadas falando a mesma língua, com circulação segura e útil do dado do paciente [2,6].
  2. IA explicável e certificada: copilotos auditáveis, contestáveis e compreensíveis — pilar ético e regulatório [3].
  3. Modelos por desfecho (VBHC): PROMs, PREMs e dados de custo como insumos de decisão [2].
  4. Cuidados híbridos (phygital): parte do cuidado no presencial, parte no digital, com acompanhamento remoto e suporte contínuo.
  5. Inteligência populacional na linha de frente: estratificação de risco guiando ações preventivas e resolutivas [2,4].

Como médicos, o que precisamos fazer agora?

  • Registrar dados com qualidade (diagnósticos padronizados, condutas estruturadas, notas reutilizáveis);
  • Avaliar criticamente as ferramentas digitais (limites, vieses e utilidade clínica);
  • Participar da governança (critérios clínicos para IA, diretrizes para telessaúde, trilhas de auditoria);
  • Aprimorar a literacia digital, para decidir melhor com apoio das tecnologias.

Referências — Estilo Vancouver

  1. Brasil. Lei nº 14.510, de 27 de dezembro de 2022. Autoriza e disciplina a prestação de serviços de telessaúde. Diário Oficial da União; 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14510.htm
  2. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 1.434, de 28 de maio de 2020. Institui a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). Diário Oficial da União; 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.434-de-28-de-maio-de-2020-258796636
  3. World Health Organization. Ethics and governance of artificial intelligence for health: large multi-modal models. Geneva: WHO; 2024. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240090675
  4. Pinto ACAR. Aplicação prática da ciência de dados em saúde. In: Netto AV, Berton L, Takahata AK, organizadores. Ciência de dados e a inteligência artificial na área da saúde. São Paulo: Editora dos Editores; 2021. p. 173-190.
  5. Nuance Communications. DAX Copilot: ambient clinical intelligence. 2024 [Internet]. Disponível em: https://www.nuance.com/healthcare/ambient-clinical-intelligence.html
  6. HL7 Brasil. Guia de implementação FHIR – br-core. 2024 [Internet]. Disponível em: https://www.hl7.org.br/fhir/core

Saúde Digital: o que mudou em 10 anos — e o que vem pela frente?

Ana Cláudia Pinto
Médica, PhD, professora na FGV-EAESP e CEO da Find.AI

Da contenção de custos à geração de valor compartilhado

De 2015 a 2025, a gestão da saúde nas organizações deixou de ser reativa — focada em “segurar sinistro” — para se tornar estratégia de valor: olhar o presente em tempo real e projetar o que vem à frente com responsabilidade digital e social. Em 2015, a questão dominante era conter o custo do benefício-saúde; uma década depois, o foco se ampliou para entender o caminho percorrido e definir a próxima onda de produtividade, qualidade e sustentabilidade. As integrações entre Saúde Ocupacional, Promoção da Saúde e Bem-estar avançaram, saindo do “silo” para uma visão mais holística — embora ainda sem padrão de mercado consolidado, sobretudo fora dos grandes centros e nas PMEs.

Custos acelerando e novos vetores de pressão

A inflação médica estrutural continua a pressionar. Em 2023–2024, a VCMH ultrapassou 20% ao ano, consumindo >13% da folha em muitas empresas (versus ~10% em 2015) — ritmo quase três vezes o IPCA, com inclinação mais íngreme ao longo da década.
Dois aceleradores marcaram o período:
Terapias personalizadas de altíssimo custo, como imunobiológicos e celulares, que em relatos privados já respondem por >10% do desembolso em algumas carteiras; o custo médico-hospitalar per capita praticamente triplicou entre 2015 e 2024.
Pós-COVID e saúde mental: presenteísmo e licenças psiquiátricas dobraram desde 2019, tornando-se a 2ª maior causa de afastamento em vários setores.

Para as operadoras, a agenda migrou de combate ao sinistro para equilíbrio econômico-assistencial e transparência, ainda sob pressão de inflação médica, envelhecimento e judicialização.

Transformação digital: dados como infraestrutura crítica

Entre 2015 e 2025, saímos de relatórios retroativos para plataformas data-driven — mas os gargalos de coleta, padronização e governança ainda limitam o ganho pleno de insight. É nesse hiato que a IA generativa desponta como divisor: acesso semântico a milhões de registros, simulação de cenários e suporte à decisão clínica/gerencial.

No Brasil, a RNDS (Portaria 1.434/2020) evoluiu para infraestrutura crítica: APIs HL7 FHIR abertas ao setor privado, histórico vacinal integrado e 5.570 municípios conectados, reduzindo barreiras à interoperabilidade — embora a adesão privada siga tímida por preocupações de segurança e regulação.

Evidências do uso de analytics e IA

Modelos preditivos acoplados a programas de gestão já mostraram valor: em Ortopedia, direcionaram casos para tratamento conservador, evitando 69% de cirurgias e entregando ROI de 4,18 em 1.716 vidas/12 meses (saúde privada). [4]
Também há ganhos com clusterização não supervisionada, antecipando grupos de alto custo antes do gasto ocorrer e viabilizando intervenções mais precoces e personalizadas.

Novo cenário regulatório e social

A Lei 14.510/2022 consolidou a telessaúde, abrindo espaço para jornadas “phygital” (híbridas, presencial+digital) com maior acesso e continuidade. [1]
Riscos psicossociais migraram de tendência para obrigação regulatória nas rotinas de GRO/PGR (NR-1), alinhados à ISO 45003 e à agenda ESG.
O VBHC ganhou tração em pilotos (bundles, P4P, risco compartilhado), mas o fee-for-service ainda predomina — e a principal barreira é dado de qualidade por paciente (custos + desfechos) para calcular “valor”.

Gestão de pessoas, produtividade e custos indiretos

Saúde corporativa passou a disputar o centro da competitividade. Em 2024, o piloto 4 Day Week Brazil (FGV-EAESP) apontou +produtividade percebida (71,5%), melhor cumprimento de prazos (52,6%) e quedas de exaustão (–72,8%) e ansiedade (–30,5%).
A flexibilidade ganhou peso nas decisões de emprego (LinkedIn, Future of Recruiting 2024), e 86% da Gen Z avaliam políticas de bem-estar como decisivas (Deloitte).
Nos custos indiretos, a gestão de RAT/FAP pode reduzir alíquotas (casos com –35%), mas home office sem ergonomia e gestão de jornada eleva riscos e passivos.
Ferramentas de IA generativa/NLP já permitem extrair e reconciliar dados de sinistros, laudos e RH, facilitando o cálculo de custo total e o ROI de programas — caminho prático para destravar a mensuração (inferência a partir das evidências acima).

O papel da Saúde Digital hoje

O conceito de e-health evoluiu para Saúde Digital: telemedicina e APS como porta de entrada; monitoramento remoto (IoT, wearables); analytics + IA (incl. modelos generativos) para triagem e suporte; interoperabilidade (FHIR) como espinha dorsal. O mercado global foi estimado em US$ 362,36 bi (2024) e pode superar US$ 1 tri (2034), impulsionado por IA, IoT e telemonitoramento — ganhos reais, porém com novas linhas de custo a considerar (plataformas, cibersegurança, integração).

Nota de tendência (inferência): a “economia dos agentes de IA” deve ampliar automação de tarefas clínicas/administrativas com copilotos certificados e trilhas de auditoria — útil para documentação, reconciliação medicamentosa e busca semântica em PEP — desde que compatível com governança ética (OMS 2024) [3].

Para onde vamos (2025–2035)

  1. Interoperabilidade real (RNDS + FHIR): dado útil, seguro e auditável circulando entre PEP, APS/tele, diagnóstico e wearables. [2,5]
  2. IA explicável e certificável: copilotos auditáveis, contestáveis e supervisionados. [3]
  3. VBHC em escala: desfechos (PROMs/PREMs) + custo por paciente integrados ao pagamento.
  4. Cuidados “phygital” como padrão operacional, com atenção às novas despesas e à segurança.
  5. Saúde mental e equidade como eixos de gestão: estratificação por desfechos e determinantes sociais incorporada a contratos.
  6. Capital humano como critério de investimento: métricas de saúde e bem-estar entram no radar de investidores (inferência a partir dos dados de produtividade e valor).

O que fazer agora (médicos e gestores)

  • Higiene de dados clínica (problemas, alergias, medicações, notas estruturadas) para que interoperabilidade/IA entreguem valor.
  • Curadoria clínica das ferramentas digitais (limites de autonomia, evidências, explicabilidade, trilha). [3]
  • Medição sistemática de desfechos e experiência (PROMs/PREMs) e custo por paciente para viabilizar VBHC.
  • Integração ocupacional-assistencial-RH para mensurar custo total (direto + indireto) e priorizar intervenções de alto impacto.

Referências (Vancouver)

  1. Brasil. Lei nº 14.510, de 27 de dezembro de 2022. Autoriza e disciplina a prestação de serviços de telessaúde. Diário Oficial da União; 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14510.htm
  2. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 1.434, de 28 de maio de 2020. Institui a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). Diário Oficial da União; 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.434-de-28-de-maio-de-2020-258796636
  3. World Health Organization. Ethics and governance of artificial intelligence for health: large multi-modal models. Geneva: WHO; 2024. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240090675
  4. Pinto ACAR. Aplicação prática da ciência de dados em saúde. In: Netto AV, Berton L, Takahata AK, organizadores. Ciência de dados e a inteligência artificial na área da saúde. São Paulo: Editora dos Editores; 2021. p. 173-190.
  5. HL7 Brasil. Guia de implementação FHIR — br-core. 2024 [Internet]. Disponível em: https://www.hl7.org.br/fhir/core
  6. Nuance Communications. DAX Copilot: ambient clinical intelligence. 2024 [Internet]. Disponível em: https://www.nuance.com/healthcare/ambient-clinical-intelligence.html
  7. Pinto AC; Tournier MB; Pavin T. Gestão integrada de saúde e qualidade de vida nas organizações, como ficou 10 anos depois. Capítulo (manuscrito). 2025. Usado como base factual para VCMH, phygital, RNDS e produtividade.