Medicina é uma profissão que exige respeito, não atalhos – Por Antonio José Gonçalves, presidente da Associação Paulista de Medicina
A criação de um curso de Medicina na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
direcionado a integrantes do MST, transformou-se em uma guerra judicial. De um lado, a
universidade, que aposta nesse modelo para reforçar a inclusão, e do outro, as entidades
médicas que apontam as distorções e os riscos institucionais.
Sob o guarda-chuva do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), a
iniciativa nasceu com a promessa de democratizar o acesso ao ensino superior para um
público historicamente marginalizado. Porém, a forma de ingresso — baseada em redação
½ e carta de recomendação, sem o crivo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou do
Sistema de Seleção Unificada (Sisu) — acende alertas legítimos.
O Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, mecanismos de inclusão no ensino
superior que dialogam com a universalidade: cotas sociais e raciais, bônus regionais,
reserva de vagas para escolas públicas. Todas essas políticas têm em comum um ponto
essencial: atuam dentro do sistema de avaliação nacional, garantindo isonomia e
credibilidade acadêmica. O caso de Caruaru rompe com essa lógica, criando um filtro
paralelo e restritivo, que substitui critérios objetivos por critérios políticos.
A universidade pública deve ser inclusiva, mas nunca segmentada. Ao transformar o
vestibular em carta de recomendação de movimentos sociais, o risco é duplo: comprometesse
a legitimidade da seleção e lança-se sombra sobre a qualidade da formação médica que
será ofertada.
Incluir não é criar atalhos. Inclusão verdadeira exige reforçar a base educacional, ampliar
políticas de permanência e garantir que jovens pobres — do campo ou da cidade — tenham
condições reais de disputar em pé de igualdade. Criar cursos sob medida para
determinados grupos, sem critérios universais, é abrir mão da própria ideia de universidade.
A UFPE transforma uma causa legítima em experimento ideológico. E quem perde não é
apenas a instituição, mas todo o País, que precisa de médicos formados com rigor, não com
privilégios travestidos de inclusão.
Não se trata de negar a inclusão. Trata-se de perguntar: inclusão a qualquer custo?
Políticas públicas devem ser desenhadas para reduzir desigualdades sem romper com a
noção de mérito aferido de forma universal. Do contrário, cria-se uma pedagogia da
exceção, que alimenta a desconfiança social e enfraquece a própria universidade pública,
pilar da ciência e da formação profissional no Brasil.
O debate aberto em Caruaru é, portanto, mais amplo do que o curso em si. Ele toca no
futuro das universidades, na credibilidade das políticas afirmativas e na própria noção de
justiça social. Se a inclusão for conquistada à custa da isonomia, a conta virá mais cedo ou
mais tarde — e será paga justamente pelos que mais precisam de oportunidades reais.
Opinião por Antonio José Gonçalves
É presidente da Associação Paulista de Medicina (APM)