Estudo realizado pela AMB e FMUSP aponta que 40% dos cursos médicos de especialização do país são EAD, modalidade que contraria a boa formação em medicina
Dados analisados pela Associação Médica Brasileira e pela FMUSP alertam sobre as consequências perigosas do ensino à distância à medicina do país e aos pacientes
Recente estudo realizado pela Associação Médica Brasileira (AMB) em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) aponta que aproximadamente 40% dos cursos médicos de especialização do país funcionam na modalidade de ensino a distância (EaD), algo, que segundo as entidades especializadas, é totalmente inconcebível para uma formação médica de qualidade, já que para isso é imprescindível o conteúdo prático de forma presencial. Esse e outros dados fazem parte do projeto, das duas entidades, chamado “Demografia Médica no Brasil 2025”, que traz informações sobre oferta e caraterísticas dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu (PGLS) em especialidades médicas no país.
Segundo o presidente da AMB, Dr. Cesar Eduardo Fernandes, melhorar o acesso a médicos especializados é muito importante, mas é preciso que esses profissionais sejam bem qualificados, o que não tem acontecido com o grande número de formandos de muitas das novas faculdades de medicina. “Não se faz especialista em curso de final de semana, muito menos em ensino a distância. Você precisa ter um aprendizado prático sólido, em que você adquira as competências, as habilidades e as atitudes permitidas para que você, enfim, possa ser registrado como um especialista”, afirma. O presidente ainda faz um alerta. A má formação de médicos na atualidade vem afetando diretamente na vida dos pacientes, com atendimento de baixa qualidade, por isso a “necessidade da realização do exame de proficiência para segurança da população“, afirmou.
O estudo analisou 2.148 cursos de PGLS em medicina ofertados por 373 instituições. Dos 40% dos cursos EAD, mais de 90% dos cursos são pagos, comercializados por instituições privadas. A maioria dos cursos (60%) está concentrada em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. As públicas são responsáveis por 17,5% do total de cursos pagos e a duração média dos cursos é de 13 meses, sendo que aqueles EAD são mais curtos (9,7 meses) em relação aos presenciais (15,4 meses) e semipresenciais (13,9 meses).
Segundo Mario Scheffer, professor do departamento de medicina preventiva da USP e coordenador da pesquisa, o estudo revelou um universo heterogêneo, com oferta em diferentes áreas médicas e grande variação quanto à localização, modalidade de ensino, carga horária, número de vagas, tempo de duração e preço. “Embora sejam obrigatórios o credenciamento da instituição de ensino e o registro de informações gerais junto ao MEC (Ministério da Educação), a oferta desses cursos independe de autorização ou reconhecimento de órgãos do governo”, explicou ele.
O diretor científico da AMB, Dr. José Eduardo Dolci explica que a legislação atual determina que o título de médico especialista só pode ser obtido após conclusão de programas de residência médica, credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica ou por meio das sociedades de especialidades médicas filiadas à AMB. “A residência médica brasileira tem exigências baseadas em fundamentos muito bem consolidados da pedagogia médica internacional. Precisamos de mais especialistas, porém profissionais formados dentro de um padrão, que dê a população qualidade no atendimento. As entidades médicas estão sendo pressionadas para que cursos pequenos, de final de semana, um mês de duração, sejam considerados válidos para que a pessoa possa prestar o título de especialista, o que é totalmente descabido”. Ele lembra ainda que atualmente, apenas um terço dos candidatos consegue obter o título de especialista.
Dr. Dolci ainda ressalta que a AMB vem sugerindo medidas importantes para manter o padrão de qualidade na formação de especialistas. “Precisamos de uma forte fiscalização sobre as “pseudo” residências, que se intitulam “cursos de especialização” sem ter credenciamento das sociedades especialidades. Também ampliarmos a discussão da recertificação periódica do título de especialista a cada 5 anos, por exemplo, através de atualizações, congressos, etc, e por fim um levantamento minucioso de todos os centros formadores e uniformização das avaliações das residências credenciados pelas sociedades de especialidades médicas, explicou ele.
A residência médica varia de dois a cinco anos, de acordo com a especialidade. Completada essa etapa, o médico pode se habilitar a prestar o exame para obter o título de especialista. Presenciais ou a distância, esses cursos médicos de pós-graduação lato sensu têm sido alvos de disputas judiciais porque a legislação impede que médicos que o fazem se apresentem como especialistas. Com carga horária mínima de 360 horas os cursos de PGLS independem de autorização ou reconhecimento de órgãos do governo, porém o médico que detém apenas certificado de PGLS não pode se apresentar como especialista.
Abertura indiscriminada de escolas médicas
Com mais de 560 mil médicos, o Brasil já possui 2,7 profissionais por 1 mil habitantes. Esse índice praticamente dobrou desde 2013, e supera os de países como Japão e Estados Unidos. Atualmente, com mais de 400 escolas de medicina em funcionamento, que juntas formam mais de 30 mil profissionais por ano, até 2035, o país terá cerca de 1 milhão de médicos em atividade. Segundo o Dr. César, presidente da AMB, atualmente há uma propagação demasiada na formação médica no nosso país. “Dezenas de escolas médicas foram abertas recentemente. Estamos próximos de formar 45 mil médicos ao ano e infelizmente, muitas dessas faculdades funcionam de forma precária, sem o mínimo de estruturação.
Ele explica que a abertura indiscriminada de escolas médicas no país não segue roteiro que respeita a qualificação da formação profissional, carece de fundamentação técnica e do conhecimento sobre a realidade do ensino médico e da assistência. Mais do que isso, passa à população uma ideia equivocada e perigosa de que aumentando de forma absurda o número de egressos dos cursos de medicina traz uma boa e segura assistência médica aos cidadãos brasileiros. “Precisamos que formuladores de políticas públicas de saúde façam uma reprogramação das necessidades de especialidades no país e das vagas de residência, criando estímulos que atraiam mais profissionais para as áreas prioritárias. “A gente sabe que faltam muitos anestesistas, por exemplo. O governo poderia incentivar oferecendo uma carreira de longo prazo, condições de trabalho e remunerações mais adequadas. O mesmo ocorre com os médicos de família”, diz ele.
Mensalidades e os mais procurados
Segundo o estudo, o preço médio dessas pós graduações é de R$ 15.782,36, sendo que os de modalidade EaD são mais baratos: custam, em média, R$ 5.696,54. As especialidades cirúrgicas apresentaram os maiores valores, R$ 27.239,99, em média. Cursos ofertados nas capitais custam o dobro dos cursos localizados nas demais cidades: R$ 20.080,95 contra R$ 9.328,36, em média.
As especialidades com maior número de cursos são Endocrinologia e Metabologia (147 cursos), Dermatologia (129), Psiquiatria (115), Radiologia e Diagnóstico por
Imagem (103) e Hematologia e Hemoterapia (101). Nas especialidades cirúrgicas foram ofertados 226 cursos, sendo os mais frequentes em Ginecologia e Obstetrícia (55), Cirurgia Plástica (45), Ortopedia e Traumatologia (32), Cirurgia Geral (21) e Otorrinolaringologia (16).
Dos 1.653 cursos com especialidade médica e modalidade de ensino informadas, aquelas com mais opções a distância foram Endocrinologia e Metabologia (106 cursos), Hematologia e Hemoterapia (63), Radiologia e Diagnóstico por Imagem (56) e Medicina do Trabalho (56). Em números absolutos, as áreas de atuação em medicina com mais cursos EaD foram Medicina Intensiva Pediátrica (16), Ultrassonografia Geral (15) e Toxicologia (9). Não tiveram oferta de EAD, os cursos de Cirurgia Crânio-Maxilo-Facial, Psiquiatria da Infância e da Adolescência e Cirurgia Bariátrica.
Segundo o professor Scheffer, em geral, esses cursos são comercializados por um mesmo conglomerado que possui escolas médicas de graduação, cursos preparatórios de residência médica, plataformas digitais, telemedicina e outros serviços. É baixa, por exemplo, a oferta de cursos gratuitos ou que tenham relação explícita com políticas, programas e metas do SUS.
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